CEGOU
SEUS OLHOS
2)
conseqüências mais particulares e mais graves
Assinalo três classes de
conseqüências que são, certamente, mais graves que as anteriores.
a)
A cegueira
do entendimento
A
primeira conseqüência gravíssima do juízo próprio é o de fazer-nos cair na
cegueira do espírito. Jesus Cristo
caracterizou como cegueira o pecado dos fariseus: Deixai-os. são cegos conduzindo cegos (Mt 15,14) e na repreensão contra as fariseus repete esta
acusação uma e outra vez: Ai de vós
condutores cegos, que dizeis: Se alguém jurar pelo santuário, seu juramento não
o obriga, mas se jurar pelo ouro do santuário seu juramento o obriga.
Insensatos e cegos! Que é maior o ouro
ou o santuário que santifica o ouro? Condutores cegos que coais o mosquito e
engolis o camelo! Fariseus cegos limpa primeiro o interior do copo e do prato,
para que também o exterior fique limpo! (Mt 23,16.17.24.26).
Trata-se,
no entanto, de uma “cegueira voluntária”.
Por isso lhes diz ao mesmo tempo: “Alguns fariseus, que se achavam com Ele,
ouviram isso e lhes disseram: Acaso também nós somos cegos? Respondeu-lhes
Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas dizeis: ‘Nós vemos!’ Vosso
pecado permanece” (Jo 9,40-41).
A
cegueira dos inimigos de Cristo é um caso extremo de “juízo próprio”. O vemos
claro em vários episódios. Por exemplo, quando
Cristo expulsa o demônio cego e mudo. O
milagre obrado sobre os espíritos imundos é induvidável sinal divino; por isso
as gentes atônitas diziam: Não será este o Filho de David? (Mt 12,23) E no entanto os fariseus (mestres e
teólogos!) atribuem a ação ao poder diabólico (Mt
12,24: Ele não expulsa demônios, senão por Belzebu). No entanto Cristo tem a paciência de
mostrar-lhes a incoerência de seus pensamentos e nem assim se diz que acreditaram.
Por isso qualifica este pecado como “pecado contra o Espírito Santo” (cf. Mt
12,32).
Eloqüente
sem igual é o relato da cura do cego de nascença. O Senhor o cura em sábado, e por isso os
fariseus interrogam ao ex-cego para saber quem obrou assim e para “convence-lo”
de que Jesus é um pecador. Em seu curto raciocínio o cego responde com a
evidencia dos fatos. Se é pecador não
sei. Uma coisa eu sei: que eu era cego e agora vejo. (Jo 9,25). Um
pecador não pode fazer milagres em nome de Deus! Mas como eles teimavam, novamente o enuncia o
raciocínio correto:
Isso é espantoso; vós não sabeis de onde Ele é
e, no entanto, abriu-me os olhos! Sabemos que Deus não ouve os pecadores; mas,
se alguém é religioso e faz a sua vontade, a este Ele escuta. Jamais se ouviu
dizer que alguém tenha aberto os olhos de cego de nascença. Se esse homem não
viesse de Deus, nada poderia fazer. (Jo
9,30-33) A reação foi aferrar-se persistentemente na própria mentira: Responderam-lhe: Tu nasceste todo em
pecados e nos ensinas? (Jo 9, 34); é
dizer, o excomungaram da sinagoga.
São
João ensina que a cegueira é um castigo de Deus, que retira sua luz àqueles que
não querem receber: Apesar de ter
realizado tantos sinais diante deles, não creram nele, a fim de se cumprir a
palavra dita pelo profeta Isaias: Senhor quem creu na vossa palavra? E o braço
do Senhor, a quem foi revelado? Não podiam crer porque disse ainda Isaias:
Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração para que seus olhos não vejam, e
seu coração não compreenda e não se convertam e eu não os cure. (Jo 12, 37-40)
A
cegueira voluntaria é, uma privação da luz da graça (da qual a luz vem e uma pessoa possa reconhecer seus erros
e seus caminhos tortos) e encontra explicações humanamente equivocadas no lugar
de explicar as coisas por suas causas sobrenaturais (para as quais é um topo
cego).
“Há
pecadores, Diz Garrigou-Lagrange, que, por seus pecados reiterados, já não
percebem a vontade de Deus que se manifesta tão claramente; deixam de compreender
que os males que lhes acontecem são castigo de Deus, e assim não se
convertem.
Buscam
explicar pelas leis naturais as calamidades... A cegueira espiritual faz que o
pecador anteponha os bens transitórios aos eternos, e lhes impede de ouvir a
voz de Deus...
A
cegueira espiritual é um castigo de Deus que retira sua luz pelos muitos
pecados reiterados; e é, portanto um pecado na qual nós voltamos às costas a
consideração das verdades divinas, antepondo o conhecimento ao conhecimento
daquele que satisfaz todas as nossas paixões e orgulho.
Se
pode dizer deste pecado o que Santo Tomaz disse da loucura espiritual, Stultitia: que é o mais oposto a contemplação da verdade. Impede-nos de ver a proximidade da morte e do
juízo. Rouba-nos a inteligência e deixa-nos
em um estado de idiotes espiritual (haebetudo mentis), que equivale à perda de
toda a inteligência superior. E deixa
assim de compreender o supremo mandamento do amor de Deus e do próximo, o valor
do sangue do Salvador derramado por nós, e o preço infinito da Missa que
perpetua substancialmente o sacrifício da cruz no altar.
É
um castigo, que o deixamos esquecido. Como disse Santo Agostinho: “Se um ladrão,
ao roubar, perde um olho, todos dirão: castigo de Deus. e tu que tem perdido o
olho do espírito, não pensas que Deus te tem castigado.”
b) O “espírito de entender ao contrario”
A
cegueira da inteligência, como castigo divino, toma às vezes o modo que chama
São João da Cruz: “espírito de entender ao contrario”. Castiga com esta cegueira especialmente quem
se deixa levar ou busca afanosamente toda classe de revelações, locuções e
aparições sobrenaturais. Isto que propriamente pertence ao pecado do “necio”,
supõe o juízo próprio já que é um gosto por buscar apoios para a fé em
revelações privadas, como se não bastasse a revelação contida nas Sagradas
Escrituras e o guia seguro do Magistério. Por entrar neste terreno, Deus deixa que se
enganem. Vale à pena recordar as palavras do Santo:
“Da
qual (do demônio) não se pode livrar se não fugindo de todas as revelações, visões
e locuções sobrenaturais.”
Deus se aborrece justamente com quem as
admite, porque vê o risco de entrar em tanto perigo, de presunção e
curiosidade, ramo de soberba e raiz e fundamento de vangloria, e desprezo das
coisas de Deus, e principio de muitos males que tanto vieram. No qual aborreceram muito a Deus, e que de
propósito os deixou errar e enganar, e escurecer o espírito, e deixar as vias
ordenadas da vida, dando lugar a suas vaidades e fantasias, segundo o que diz
Isaías (19, 14), dizendo: Dominus miscuit
in medio eius spiritum vertiginis: que é como dizer: O Senhor espalhou entre eles um espírito de confusão, que em bom romance quer dizer espírito de entender ao contrario.
A
qual diz sensivelmente Isaias a nosso propósito, o diz por aqueles que andavam
buscando saber as coisas que haveriam de acontecer por via sobrenatural. E por
isto disse que Deus misturou no meio o espírito de entender ao contrario.
Não porque Deus quisesse nem lhes desse
efetivamente o espírito de errar, senão que eles quiseram se meter no que
naturalmente não podiam alcançar. Aborrecido disto, os deixou desatinar, não
dando luz no que Deus não queria que se intrometessem. E assim disse que Deus misturou aquele
espírito privativamente. E desta maneira é Deus causa daquele dano, causa
privativa, que consiste em tirar sua luz e favor; e tirando, necessariamente
vagam no erro.
E
desta maneira Deus dá licença ao demônio para que cegue e engane a muitos,
merecendo seus pecados e atrevimentos. E
por permissão de Deus sai com eles o demônio, tendo eles e crendo por bom
espírito. Tanto, que, ainda sejam muito
persuadidos que não é, e não há remédios de desenganar-se, por quanto tem já
por permissão de Deus, ingerindo o espírito de entender ao contrario; como lemos (1 Re 22, 22) ter acontecido aos
profetas do rei Acab, Deus deixando-os enganar com o espírito da mentira, dando
licença ao demônio para eles, dizendo: Decipies,
et praevalebis; egredere, et fac ita; que quer dizer: Partirei e serei um espírito de mentira na boca de todos os seus
profetas. O Senhor disse: Tu o enganaras, serás bem sucedido. Vai e faze
assim. E pode tanto com os profetas e com o rei para
enganar-los, que não quiseram crer ao profeta Miquéias, que profetizou a
verdade muito ao contrario do que os outros tinham profetizado. E porque Deus
lhes deixou cegar, por estarem com afeto de propriedade no que queriam que lhes
acontecessem e que respondesse Deus segundo seus apetites e desejos; o qual era
meio e disposição certíssima para Deus deixá-los de propósito para ficarem
cegos e se enganarem.
Porque
assim profetizou Ezequiel (14, 7-9) em nome de Deus; do qual falando contra ele
que querendo saber por meio de Deus curiosamente, segundo a variedade de seu
espírito, disse: porque homem da casa de
Israel ou dentre os estrangeiros que vivem em Israel se afasta de mim dando
lugar a honra no seu coração aos seus ídolos imundos, e pondo diante de sua
face o tropeço da sua iniqüidade, e que vier ao profeta para me consultar serei
Eu o Senhor que lhe responderei. Porei o
meu rosto contra esse homem farei dele sinal e provérbio, riscando-o do seio de
meu povoe sabereis que eu o Senhor seduzirei este profeta, e estenderei a minha
mão contra ele exterminado-o do seio de meu povo. Ego, Dominus, decepi prophetam illum, isto é: Eu, o
Senhor enganei aquele profeta. O qual se
há de entender, não concorrendo com seu favor para que deixe de ser enganado;
porque isso quer dizer quando diz: Eu, o Senhor, lhe responderei por mim mesmo
aborrecido, o qual se afasta de sua graça e favor daquele homem. De onde necessariamente se segue ser enganado
por causa do desamparo de Deus. E então
acodem ao demônio para responder segundo o gosto e apetite daquele homem, o
qual como gosta deles, e as respostas e comunicações são de sua vontade, muito
se deixa enganar”.
c) Os pecados contra a fé
O
juízo próprio pode, em caso mais extremo, mas não infreqüente, conduzir também
a duvida de fé, a heresia, a incredibilidade ou cisma, posto que estes são
pecados que tem origem na preferência do juízo pessoal sobre o objeto da fé por
cima por cima do juízo da igreja de onde reside a garantia da Autoridade
Divina. A incredibilidade é o menosprezo
da verdade revelada ou rejeição voluntaria de prestar-lhes assentimento.
A
heresia é a negação persistente, depois de recebido o batismo, de uma verdade
que se deve crer, com fé divina e católica, ou a duvida persistente sobre a
mesma; apostasia é a rejeição total da fé cristã; cisma a rejeição da sujeição
ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da igreja a eles
submetidos. Em todos estes casos se tem
referido ao juízo próprio sobre a verdade revelada antes do juízo da igreja;
portanto se tem posto o próprio juízo como supremo critério da fé.
Exemplo
notável disto temos na historia de Israel. A perversão da inteligência é um
pecado em que constantemente caiu o povo eleito, afastando-se de Deus
(apostasia) e voltando-se aos ídolos pagãos (idolatria, superstição e
sacrifícios humanos). Nem a pregação dos
profetas, nem os mais duros castigos temporais fizeram “entender” a este povo a
natureza de seu pecado.
Eis
aqui alguns textos mais que eloqüentes:
·
Ate hoje os
advertir dizendo: Obedecei-me! Mas eles
não escutaram nem prestaram atenção, cada qual seguiu a obstinação de seu coração perverso. (Jer.
11,7-8).
·
Esse povo mau que
se recusa a escutar minhas palavras, que segue a obstinação de seus corações,
que corre atrás de deuses estrangeiros para servi-los e prostrar-se diante
dele: será como este cinto que não serve para nada. (Jer.13, 9-10).
·
“Converta-se,
pois, cada um de seu caminho perverso, melhorai vossos caminhos e vossas obras.
mas eles dirão É inútil! Nós seguiremos nossos planos; cada um agirá conforme a
obstinação de seu coração malvado”... (Jer. 18,11-12)
Meu povo, contudo, esqueceu-se de mim! Eles oferecem
incenso ao nada (Jer.18, 11-15).
·
“porque este povo
é rebelde, constituído de filhos desleais, de filhos que recusam ouvir a lei do
Senhor e dizem aos videntes: não queirais ver, e aos profetas: não procureis ter
visões que nos revelem o que é reto. Dizei-nos coisas agradáveis, procurai ter
visões ilusórias. afastai-vos do caminho, apartai-vos da vereda, fazei
desaparecer da nossa presença o Santo de Israel”. (Is
30, 9-11)
·
E não escutaram
nem prestaram ouvido; andaram conforme os seus desígnio, na dureza de seu
coração perverso e deram as costas em vez da face. Desde o dia em que vossos pais saíram da
terra do Egito até hoje, enviei-vos todos os meus servos, os profetas; cada dia
eu os enviei, incansavelmente. E eles
não me escutaram, nem prestaram ouvidos, mas endureceram a sua cerviz e foram
piores do que seus pais. Tu lhe dirás
todas estas palavras, mas eles não te escutarão. Tu os chamaras mas eles não te
responderão. Tu lhes dirás: Esta é a
nação que não escutou a voz do Senhor seu Deus, e não aceitou o
ensinamento. A fidelidade pereceu: foi
eliminada de sua boca. (Jer. 7,24-28).